13 janeiro 2009

Juiz acusado por escravidão interfere em caso de escravagista

Sentença do juiz Marcelo Testa Baldochi devolveu processo contra Miguel de Souza Rezende à Justiça Federal. Promotora adverte: mudança de esfera causa prejuízo processual e crime de trabalho escravo pode prescrever.

O juiz Marcelo Testa Baldochi, da Comarca de Bons Pastos (MA), e o pecuarista Miguel de Souza Rezende são acusados pelo crime de reduzir trabalhadores à condição análoga à de escravo. Em substituição à juíza titular da Comarca de Senador La Rocque (MA), o magistrado envolvido com trabalho escravo tomou uma decisão que, segundo a promotora Raquel Chaves Duarte Sales, acabou atendendo aos interesses do fazendeiro Miguel, réu em processo de exploração de mão-de-obra escrava.


Incluído em 29 de dezembro de 2008 na "lista suja" do trabalho escravo - cadastro federal que reúne os empregadores envolvidos com esse tipo de crime -, Marcelo remeteu novamente o processo de Miguel à Justiça Federal, mesmo depois de uma longa novela de idas e vindas entre tribunais e do posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo do Poder Judiciário, pelo julgamento do referido caso na esfera estadual.

O despacho do juiz Marcelo, datado de 25 de janeiro de 2008 - quando ele substituía a titular da Comarca de Senador La Rocque (MA), Ana Beatriz Jorge de Carvalho Maia -, foi um grave erro, na opinião da promotora Raquel Chaves Duarte Sales, do mesmo município.

A mais nova mudança para a esfera federal causará prejuízo processual, de acordo com Raquel. Principalmente porque Miguel de Souza Rezende está com 76 anos e o caso pode prescrever, como já ocorreu em outro processo contra o fazendeiro pelo mesmo crime de trabalho escravo. "É interessante para a defesa manter o processo de um lado para outro. Não cabia nesse momento mandar os autos novamente para a instância federal", completa.

Em 8 de setembro de 2008, a promotora Raquel entrou com um pedido de reconsideração para que a decisão fosse revogada. A juíza titular de Senador La Rocque (MA), Ana Beatriz, acatou o pedido da promotora e convocou audiência para ouvir testemunhas em novembro do ano passado.

Contratado por Miguel de Souza Rezende, o advogado Fábio de Oliveira Rodrigues entrou, porém, com um pedido de habeas corpus para que o caso fosse julgado pela Justiça Federal. Vale lembrar que no início do processo, a defesa encaminhara uma solicitação exatamente no sentido inverso, pedindo para que o caso saísse da esfera federal para ser analisada pela Justiça Estadual. Mesmo assim, o desembargador Raimundo Nonato Magalhães Melo concedeu a liminar que suspendeu a audiência do processo. Porém, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Maranhão decidiu por unanimidade, na sessão desta terça-feira (13), negar o pedido de habeas corpus e o processo deve ser mantido na Justiça Estadual.

Idas e vindas
O processo em que o pecuarista é réu foi protocolado pelo Ministério Público Federal (MPF) em janeiro de 2002, em decorrência de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Antes de qualquer interrogatório, os advogados de Miguel entraram com um pedido de habeas corpus pedindo para que o caso fosse julgado pela Justiça Estadual. Naquela ocasião, o juiz federal Mauro Rezende de Azevedo aceitou a liminar e o processo foi remetido para a Justiça Estadual do Maranhão, que promoveu os primeiros interrogatórios. O MPF recorreu da decisão ao STF via o Recurso Extraordinário 466508/MA.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ser competência da Justiça Federal julgar crimes de redução à condição análoga à de escravo em novembro de 2006. Por conta disso, o caso foi novamente enviado para a esfera federal, em 1º de janeiro de 2007. Novas contestações, porém, culminaram no pronunciamento específico do STF sobre a questão.

Em 2 de outubro de 2007, o ministro Marco Aurélio Mello determinou que o processo contra Miguel de Souza Rezende era um "simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho", portanto, não era de trabalho escravo, crime que "pressupõe o cerceio à liberdade de ir e vir". Com isso, o STF decidiu pela incompetência da Justiça Federal para julgar o caso e, outra vez, o processo retornou para o Maranhão.

O juiz Marcelo decidiu pela devolução do processo à instância federal, contrariando a recomendação do ministro Marco Aurélio, do STF. "A decisão de Dr. Baldochi conturbou a marcha do processo. A competência já havia sido definida pelo Tribunal Regional Federal 1º Região e pelo STF. O fato do MPF ter recorrido não criou obstáculos para o andamento do processo porque o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo", explica a promotora.

A promotora de Senador La Rocque (MA) lembra também das dificuldades para reunir todas as testemunhas e os próprios fiscais do MTE que autuaram o pecuarista Miguel compareçam às audiências. "Quando conseguimos a presença de todos, essa decisão que atrasará o caso foi tomada".

Consultado pela Repórter Brasil, Marcelo afirma que a sentença apenas e tão-somente preservou o processo. "A decisão cuidava do deslocamento da competência para julgamento do processo da Justiça Estadual para a Justiça Federal, nos termos do art. 109 da Constituição Federal e reiterada orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal". O juiz disse ainda que a continuidade do caso na instância estadual poderia gerar sua nulidade absoluta. "Não houve nenhum juízo de valor quanto ao mérito da questão".

Coincidência
Acusados pelo crime de trabalho escravo, o juiz Marcelo Testa Baldochi e o pecuarista Miguel de Souza Rezende têm outra coisa em comum. Ambos contrataram os serviços do escritório Advogados Associados Fabiano, Fábio & Fabiano - de Fabiano de Cristo Cabral Rodrigues, Fábio de Oliveira Rodrigues e Fabiano de Cristo Cabral Rodrigues Júnior - para defendê-los na Justiça.

Marcelo sustenta que Fábio de Oliveira Rodrigues, que defende diretamente Miguel de Souza Rezende, "não é o que milita" na defesa dos processos que o magistrado responde no Tribunal de Justiça do Maranhão. Ocorre que todos os sócios do escritório de advocacia constam no processo do pecuarista Miguel, inclusive os nomes daqueles que defendem Marcelo. A Repórter Brasil entrou em contato com o advogado Fábio, que não quis conceder entrevista.

A promotora Raquel Chaves Duarte Sales ficou surpresa quando tomou conhecimento do fato durante uma audiência. "Estava conversando com o advogado Fábio de Oliveira Rodrigues sobre a postura de Baldochi durante o processo, no qual me pareceu parcial com o réu. E ele [Fábio] defendia a postura do juiz. Então o questionei, sem saber, se ele era advogado de Baldochi também. E sem nenhuma ressalva ele me disse que sim".

Históricos
Miguel de Souza Rezende responde na Justiça pelo crime de exploração de pessoas em condições análogas à escravidão na Fazenda Rezende, em Senador La Rocque (MA). As fiscalizações do MTE em questão ocorreram entre setembro e outubro de 1996. Esta mesma propriedade foi flagrada por trabalho escravo pelo menos mais duas vezes (em 2001 e 2003). O nome de Miguel já foi incluído por três vezes na "lista suja" do trabalho escravo.

O fazendeiro também é proprietário da Fazenda Zonga, localizada dentro da Reserva Biológica (Rebio) de Gurupi. Durante a operação de 1996, foram libertadas ao todo 52 pessoas das Fazendas Rezende e Zonga. Um ano depois, em outubro de 1997, as mesmas fazendas passaram por vistoria do grupo móvel, tendo sido libertados mais 32 trabalhadores.

Já a Fazenda Pôr do Sol, do juiz Marcelo Testa Baldochi, foi fiscalizada em setembro de 2007. No local, o grupo móvel do MTE) encontrou 25 pessoas - entre elas um adolescente de 15 anos - em condições análogas à escravidão. O juiz foi denunciado pelo Ministério Público do Maranhão por crime de trabalho escravo. A denúncia foi protocolada pelo procurador-geral da Justiça, Francisco das Chagas Barros de Sousa.

Os alojamentos da Fazenda Pôr do Sol, localizada no município de Bom Jardim (MA), eram precários e a alimentação era inadequada. Não havia água potável e nem equipamentos de proteção individual (EPIs). Na ocasião, foram constatadas ainda outras irregularidades como sonegação previdenciária, porte ilegal de armas, motosserras sem registros e crimes de ordem ambiental. De acordo com os trabalhadores, o juiz orientara o grupo para dizer à fiscalização que estavam ali como posseiros no plantio de roça, numa tentativa de descaracterizar o crime e burlar a ação fiscal.

O juiz, que na ocasião atuava como titular da 2ª Vara Criminal de Imperatriz (MA), pagou R$ 32 mil aos trabalhadores vindos dos municípios de Alto Alegre do Maranhão (MA), Codó (MA) e Buriticupu (MA). Ele assinou também um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) para a melhoria das condições na Fazenda Pôr do Sol.

Por conta da denúncia de trabalho escravo, o Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Maranhão (Sindjus-MA) apresentou um pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi negado pelo conselheiro Técio Lins e Silva. Diante da recusa, o Sindjus protocolou um mandado de segurança junto ao STF para que o CNJ, órgão máximo de controle externo do Judiciário, avalie o caso de Marcelo Testa Baldochi.

O processo de vitaliciamento do juiz do Maranhão foi suspenso por decisão do Tribunal de Justiça estadual. Marcelo aguarda o julgamento final do mandado de segurança que suspendeu seu benefício. Ele - que chegou a ser afastado por ter descumprido determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em outra decisão no município de Benedito Leite (MA) - questiona o direito a voto, no seu processo, de desembargadores que possuem filhos na magistratura.

Por Bianca Pyl

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